A cultura vocacional
1. Estamos prestes a completar 29 anos de criação e de instalação da nossa querida e amada Arquidiocese. Uma oportunidade de ouro para um olhar vocacional diferenciado. Há muitos anos que me entendo como animador e promotor vocacional?. Hoje me sinto meio relapso neste serviço tão querido e tão bem rezado por Jesus: “peçam ao Senhor da Messe que envie operários para a
sua messe” (Mt 9,37).
2. Vocação se da mais por atração do que por proselitismo. Mais por atos do que por palavras. O resto é propaganda e teatro. A arte de vocacionar e de promover as vocações é a arte do encantamento. Quanto mais se é encantado, mais se encanta e mais surgem vocações. E são variados os motivos de encantamento vocacional. A minha vocação vem de um tipo de encantamento. Eu me encantei com o momento de purificação do cálice na missa: eu queria beber daquela bebida e do jeito que o padre bebia, no caso o vinho no cálice. Eu nem sabia 0 que era.
3. Nas andanças que faço por este imenso Brasil, converso bastante sobre vocações. Nessas conversas, duas certezas me vêm em mente frequentemente: a primeira, há vocações onde há trabalho consistente de animação e de promoção vocacionais. E a segunda, 0 encantamento vocacional nasce no seio das paróquias, pelo testemunho e cultivo vocacional dos padres. Comumente as vocações não nascem de gerações espontâneas, como as ervas nos quintais. É na paróquia onde se dá os primeiros passos do encantar vocacional. A paróquia é local onde nasce a cultura vocacional e o cultivo das vocações. A paróquia é, portanto, o elo inicial e final da intermitente vicissitude vocacional. Ela é 0 ventre, a manjedoura e o berço onde são gestadas, cultivadas e animadas as vocações.
“Ele esta fora de si’”²
4. A breve teologia querigmática da vocação afirma que, em matéria de vocação, tudo é do Pai. O Pai é a origem de toda vocação. Ele é 0 autor da vida. E a vida é a primeira vocação. Jesus Cristo é a verbalização e a visualização deste chamado do Pai. Jesus é 0 primeiro promotor vocacional e o criador da cultura vocacional. E dele o mandato de orações pelas vocações (Mt 9,37). Ele chama, convida, acolhe, promove, cultiva e pede oração pelas vocações. E o Espirito Santo é a chama acesa para o ardor e o encantamento vocacionais. Ele é quem ajuda no discernimento, na animação e na distribuição dos serviços vocacionais e dos ministérios. Foi 0 Espirito Santo que acorrentou e indicou a Paulo o caminho da missão (At 16,6; 13,2-3; 21,11) e arrebatou João e Filipe para a missão (Ap 1,10; At 8,39).
5. Alguém inadvertidamente poderá dizer de mim o que disseram de Jesus: “Ele esta fora de si!” Não estou falando de mim. Estou falando de Jesus. Gosto muito deste texto, segundo o qual, Jesus, em plena atividade missionaria, recebe o comunicado de que sua família estava a sua procura porque, conforme lhe disseram: “Ele esta fora de si” (Mc 3,21). Jesus, de fato, esta sempre fora de si para cuidar das pessoas. Seu ego não é inflado e nem autorreferencial. Para mim este é o primeiro dos princípios vocacionais: esquecer-se de si para amar, reverenciar e servir a Deus e aos irmãos, com o coração indiviso. Não somos cristãos para ficar parado, mas para sair e ir; não para ganhar, mas para gastar; não para perder simplesmente, mas para adquirir sentido da vida; não para reter, mas para doar e doar-se.
6. “Estar fora de si” é sentir-se um peregrino de esperança. Peregrinar é a maneira de ser e de viver a identidade vocacional. Faço a experiência de Deus, melhor dizendo, Deus faz a sua experiência em mim, nessas constantes peregrinações. Neste mundo, somos todos peregrinos de esperança e mendicantes para a eternidade. Somos cidadãos do céu. Nossa pátria é 0 Céu (Fl 3,20- 21). Precisamos ter um pé na estrada e o outro na eternidade; um pé na realidade e outro no sonho, na sede, no desejo, no querer e no procurar. O discípulo de Jesus é alguém que vive porque é criado, amado e chamado por Deus para se inserir na realidade do mundo pelos valores da eternidade. Jesus mesmo foi alguém que fez a experiência de viver “fora de si” porque vivia totalmente mergulhado no mistério de Deus que tudo abraça, tudo transforma e a tudo da sentido. A vocação, em minha vida, não é um enfeite, um acréscimo e um remendo. Para isto eu nasci: para amar, reverenciar e servir a Deus (Santo Inácio de Loyola). Vocação é semelhante a pérola preciosa e ao tesouro escondido, dos quais Jesus fala nas duas sabias, pequenas e belas parábolas (Mt 13,44-46).
7. Jesus “fora de si” é, portanto, a medida justa, completa e correta da vocação. Ele é o homem completo, total, perfeito, transparente e transcendente. “Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano” (SC 22). Ele rompe as barreiras, sai de si e vai além. Por estar fora de si, se deu inteiramente, “uma vez por todas: Ephapax” (Hb 9,28), a Deus, para a humanidade. Jesus fez a oblação completa de si mesmo, diferentemente dos antigos sacrifícios de bodes, de bezerros e de touros. Ele mesmo é o Cordeiro de Deus (Jo 1,29), imolado (Ap 13,8), santo, sem mancha, perfeito e íntegro (Hb 9,11-
13). Ele, de fato, é provido de disponibilidade total e desprovido de apego de si mesmo. Ele não possuía o ego inflado. O apego desordenado atrofia 0 seguimento de Jesus e compromete a qualidade da missão. Seguir Jesus é deixar de viver para o eu; é descentrar-se, não ser mais o centro de nosso próprio projeto.
Palmas, ícone vocacional
8. Já verbalizei, diversas vezes, e os dados não me deixam mentir, que estamos passando por uma crise vocacional aqui em Palmas. Segundo afirmam os místicos e os contemplativos, não somos nos que olhamos para um ícone, é um ícone que olha para nos. O que se diz sobre o ícone, podemos dizer igualmente com relação a Palmas, qual ícone vocacional. Em outras palavras, não somos nos que olhamos para a crise vocacional, pela qual passa Palmas. E 0 próprio Deus que esta olhando. O olhar primeiro é de Deus. O nosso olhar que contempla a crise vocacional é um segundo olhar. E a nossa solicitude vocacional não para encher Seminário, mas para chamar os
que Jesus quis e quer, para estarem com ele e para serem enviados em missão (Mc 3,138s). E responsabilidade da Igreja local prover as vocac6es para as necessidades pastorais da Igreja inteira, bem como das suas. O “ide até os confins do mundo” (Mc 16,15ss; Mt 28,19ss), do mandato missionário de Jesus, é para todos e para todas as vocações.
O que dizer mais, ou menos, e 0 que fazer mais?
9. A Arquidiocese de Palmas, no alto dos seus 29 anos de existência, ainda não esta totalmente pronta. Ainda esta lhe faltando um pedaço. Ainda existe um longo caminho a percorrer (1Rs 19,7). O que o Espírito diz a Felipe, diz também a nós, enquanto Igreja de Palmas: “aproxima- te desse carro e acompanhe-o” (At 8,29). Somos uma Igreja peregrina de esperança (Rm 5.5). Creio que todos nos queremos o bem da nossa Igreja. Mesmo se uns acham que é por aqui, outros por ali, outros por 14 ou outros ainda por acola. Vocação é símbolo e sinal de vitalidade e de saúde eclesial. Pergunto, diante da crise vocacional pela qual passamos: será que perdemos a capacidade e o poder de convocação e de encantamento da juventude? Como tirar Palmas da defensiva vocacional?
10. A palavra que nos guiou até agora, embora não tenha sido usada, foi a palavra provocação (pro+vocação: chamar-nos em causa). Diante da provocação exposta, precisamos tomar uma decisão. E decisão tem a ver com cisão (de+cisão). Embora sejamos um Igreja
relativamente nova, viva, dinâmica, f0raterna, pujante e em plena expansão geográfica, espiritual e missionaria, temos ainda um grande déficit vocacional. No entanto, devemos cuidar para não disseminar mais opiniões que não condizem com a realidade. Não venham me dizer que não temos vocação porque não tratamos bem os vocacionados. Basta para isto ver o volume de recursos que investimos anualmente; bem como os encontros vocacionais, os estágios pastorais, as experiências missionarias e as semanas de convivências com Os seminaristas e vocacionados.
11. Como legado do nosso querido Papa Francisco, de saudosa memória, concluo com esta palavra que certamente traduz todo o seu vasto ensinamento teológico pastoral: proximidade de Deus, do bispo, dos padres e do povo³. A crise vocacional, pela qual passamos, não é mais por falta de proximidade e de testemunhos, de trabalho de animação vocacional e de oração pelas vocações? De que menos e que mais? Fato é que não estamos falando ao coração da juventude. O que mais nos resta fazer? Por que fazer? Quais são os reais motivos? Onde estão os gargalos e impedimentos? Trabalhar mais? Testemunhar mais? Rezar mais? O que mais?
12. Lembremo-nos de que rezar pelas vocações não é lembrar ao um Deus distante, esquecido ou indiferente de que precisamos de vocação. E exatamente o contrário. E lembrar-nos. Nós é que, às vezes, estamos distantes, esquecidos e indiferentes. E isto o que afirma esta pérola vocacional: “toda vocação é graça sua”. Assim seja!
Eu amo a minha vocação!
Dom Pedro Brito Guimarães
Arcebispo de Palmas
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